Alleria não nasceu forte. Ninguém nasce. Ela era, em sua essência mais pura, feita de ternura. Tinha olhos grandes que absorviam o mundo como se ele ainda pudesse ser belo, mesmo em suas falhas. Desde pequena, via poesia nas pequenas coisas: no orvalho da manhã repousando sobre a relva, no canto de um passarinho cansado, na mão estendida de um estranho que apenas sorria. Ela acreditava. Nas pessoas, nas promessas, nos laços invisíveis que unem corações.
E talvez por isso o mundo a tenha escolhido como alvo.
O que aconteceu com ela não foi uma tragédia única, um evento brutal que rompessem seus dias de forma abrupta. Foi uma construção lenta, silenciosa, quase gentil em sua crueldade. Como gotas caindo sobre a mesma pedra por anos, até perfurá-la. Começou com pequenos abandonos — uma ausência sem explicação, um carinho negado, uma palavra cortante disfarçada de conselho. Aqueles que diziam amá-la eram os que mais lhe doíam. E isso confundia. Porque quando o amor machuca, quem se pode culpar?
Alleria começou a mudar sem perceber. Um dia deixou de sorrir ao acordar. No outro, já evitava o espelho. E depois, parou de sonhar com o futuro. Os que estavam ao redor notaram a mudança, mas não perguntaram. Apenas se afastaram. Como se tristeza fosse uma praga contagiosa. Como se alguém quebrado deixasse de merecer afeto.
Mas foi o último golpe que a destruiu.
Ele. O único em quem ainda confiava. Aquele que conhecia suas cicatrizes e dizia amá-las. Que prometera ficar, mesmo nos dias ruins. Foi ele quem gritou palavras que não voltam. Foi ele quem a acusou de ser demais, de sentir demais, de existir como se isso fosse um erro. E então ele se foi. Não com um adeus, mas com um silêncio que doeu mais que qualquer grito.
Alleria caiu no chão frio do quarto naquela noite e ali ficou. Chorou até as lágrimas secarem e depois chorou por dentro, onde ninguém via. E quando amanheceu, já não era ela.
Não havia mais nada para buscar. As ruas, as pessoas, os rostos, tudo lhe parecia distante, artificial. O mundo havia se tornado um lugar hostil demais para alguém como ela. Então, pela primeira vez, tomou uma decisão que era só sua: iria desaparecer. Mas não como os que desistem da vida. Ela queria viver — só não ali, não com eles, não sob as regras de um jogo onde bondade é fraqueza e ternura é punida.
E assim foi.
Sem deixar cartas. Sem explicações. Apenas partiu.
Foram dias e dias de caminhada. Com os pés feridos, a fome roendo o ventre, o corpo cansado e a alma exausta. Mas ela não parava. Era como se a dor fosse empurrando-a, como se tudo o que perdera agora a impulsionasse. Subiu colinas, atravessou riachos, cruzou vales esquecidos por mapas. E quando chegou àquela floresta antiga, sentiu algo que não sentia há tempos: um abraço invisível. A terra parecia aceitá-la. As árvores não faziam perguntas. Os animais não exigiam sorrisos.
Ali, enfim, pôde respirar.
Montou um abrigo entre raízes e folhas. Passou a colher os frutos silvestres, a observar os movimentos do céu, a ouvir os cantos da noite. Fez amizade com uma coruja que lhe visitava ao entardecer. Passou a conversar com o vento. Sentia a presença de algo maior — talvez a própria natureza, talvez o espírito das mulheres que também haviam fugido do mundo. Na floresta, Alleria deixou de ser uma menina ferida. Tornou-se loba.
Não uma loba feroz. Não um monstro vingativo. Mas uma criatura feita de silêncio, de observação, de instinto. Sozinha, sim. Mas dona de si. A solidão, ali, era um alívio, não uma dor. Ninguém podia feri-la. Ninguém mentia. O tempo corria diferente. E ela, enfim, não precisava provar nada a ninguém.
As lembranças ainda vinham. Em algumas noites, caía de joelhos e soluçava até o corpo inteiro doer. Gritava sem som. Mas eram lutos que precisava viver. E ali, entre as árvores, ninguém a calava.
Ao longo dos meses, ela deixou de chorar. Não porque esqueceu — mas porque aceitou. Ela era agora sua própria história. Os que a feriram ficaram para trás. Suas vozes não ecoavam mais ali. As sombras não a alcançavam. E ainda que não fosse plena, ainda que carregasse cicatrizes que jamais desapareceriam, Alleria era, finalmente, livre.
E isso, para alguém que já foi cativa de tantos afetos, era tudo.
P.S: Essa Fanfic conto, crônica ou qualquer nome que você queira dar, ou eu chama-la é criação minha. Por favor respeito os direitos autorais dela.
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