Dizem que há corações que nascem com trilhas em vez de raízes — e que, quando o destino sussurra na direção da floresta, não há alma inquieta que consiga resistir. Era assim com Ayara, uma jovem de cabelos lisos e negros como a noite antes do fogo, olhos azuis como o reflexo da lua nas águas paradas e pele marcada por histórias: tatuagens em espirais, folhas, luas e lobos.
Ayara sempre fora fascinada por mistérios — não os dos livros, mas os que se escondem atrás do silêncio das árvores. Estudava mitologia indígena na universidade, mas seu espírito ansiava por mais do que palavras em papel. Queria sentir as lendas pulsarem sob os pés. Por isso, quando surgiu a oportunidade de integrar um grupo de pesquisa no coração da Floresta Kaluanã, não hesitou.
Instalou-se em um acampamento pequeno, entre pesquisadores e guias nativos. Os dias eram cheios de anotações, registros e longas caminhadas. Mas eram as noites que mais a chamavam — quando os sons da mata se tornavam canção e os lobos, seus animais de alma, uivavam como se reconhecessem a loba que ela trazia dentro de si.
Em uma dessas manhãs quentes e úmidas, após uma trilha longa, Ayara caminhou sozinha até um rio escondido entre cipós e pedras. Ali, entre raízes e folhas caídas, despiu-se e entrou na água, deixando que a corrente fria levasse as poeiras e o cansaço.
Foi então que o sentiu: o arrepio. Não de medo, mas de ser observada por algo que não ameaçava, apenas... via. Levantou os olhos. No alto de um penhasco estreito, à sombra de uma árvore antiga, estava ele.
Um homem vestido com penas, colares de sementes, o corpo nu parcialmente coberto por pinturas em forma de garras e redemoinhos. Ao seu lado, um grande gavião-real, de olhos tão vivos quanto os dela. O vento brincava com suas penas, e havia um silêncio entre eles — o tipo de silêncio que antecede o sagrado.
Ayara não se cobriu. Sentia-se estranhamente em casa sob aquele olhar. O homem desceu como se fizesse parte da floresta, pés leves, passos firmes. Quando se aproximou, falou com voz de trovão abafado:
— “Você tem os lobos tatuados no corpo. Por que carrega os guardiões?”
Ela sorriu, desarmada.
— “Porque eles são minha alma, e eu sou parte da matilha da terra. E você, quem é?”
— “Sou Aruani, filho do gavião e da neblina. Vivo onde os homens se esquecem de procurar.”
Ayara sentiu, então, algo mais forte que curiosidade: um reconhecimento antigo, como se suas peles tivessem se encostado em outra vida.
Nos dias que se seguiram, Ayara desaparecia do acampamento durante as manhãs e voltava ao entardecer com olhos distantes e um leve sorriso. Ninguém sabia que ela se encontrava com Aruani sob o abrigo das árvores, onde ele lhe contava as histórias que nunca foram escritas. Ela ouvia sobre a serpente que tece os rios, o espírito do fogo que dança nas fogueiras dos antepassados, e sobre os amantes que viraram estrelas porque o mundo não os compreendia.
Ele tocava sua pele tatuada como se decifrasse profecias. Ela acariciava suas penas como se enxergasse sua alma em cada fibra. O gavião voava em círculos acima deles, guardando o amor que florescia.
Uma noite, Ayara sonhou com um lobo branco caminhando ao lado de um gavião, sob a luz da lua. No sonho, a floresta sussurrava: “Vocês são partes do mesmo canto, mas cantam em línguas diferentes.”
Acordou em lágrimas. Sabia que Aruani não era inteiramente deste mundo. Ele vivia entre os véus, em um espaço onde tempo e carne não eram os mesmos. Seu corpo era real, mas sua essência era antiga demais para o concreto.
Na última noite antes de sua partida, Ayara foi ao mesmo rio, o da primeira visão. Aruani a esperava.
— “Preciso voltar para o mundo dos homens. Mas não quero esquecer...” — disse ela.
Ele se aproximou, encostou a testa na dela e murmurou:
— “Se um dia você escutar o canto de um gavião ao lado de uivos noturnos, saberá que ainda estou por perto.”
E entregou-lhe uma pena negra com a ponta prateada.
Ela partiu no dia seguinte, mas nunca mais foi a mesma. Tornou-se escritora, contadora de lendas e estudiosa das histórias que só se revelam aos que escutam com o coração. Em sua casa, havia pinturas de lobos, penas e olhos de gavião.
E, às vezes, muito raramente, em noites de lua cheia, Ayara ia até o bosque mais próximo. Lá, sentava-se sob uma árvore antiga. E quando o vento soprava certo, ela sentia o arrepio de novo.
Porque alguns amores não moram em cidades ou florestas. Moram entre os mundos — onde o sagrado toca o humano.
P.S: Essa Fanfic conto, crônica ou qualquer nome que você queira dar, ou eu chama-la é criação minha. Por favor respeito os direitos autorais dela.