Na floresta, não existia pressa.
As árvores respiravam com paciência milenar. Os rios corriam sem destino, como se soubessem que o importante não era chegar, mas apenas fluir. E Alleria, com o corpo marcado pela dor e o espírito cicatrizando aos poucos, permitiu-se reaprender o tempo.
Ela dormia quando o corpo pedia, acordava quando a luz dourava a pele do mundo. Não mais havia relógios. Não mais havia vozes ordenando, cobranças sufocantes, palavras cheias de expectativas. Havia apenas ela — e o silêncio, que antes a aterrorizava, agora era seu abrigo.
O silêncio da floresta era diferente. Era vivo.
Era feito de sussurros das folhas, do canto tímido das aves, do farfalhar de pequenos animais entre os arbustos. Era um silêncio que dizia “você pode respirar agora”. E Alleria respirava. Longo, profundo, pela primeira vez em muito tempo. Como se cada suspiro arrancasse de dentro dela mais um pedaço da velha dor, mais um grilhão invisível que antes a prendia ao que não merecia.
No início, o corpo sentia falta do que conhecia. A língua procurava palavras, os ouvidos ansiavam por conversas. Mas aos poucos, ela aprendeu outra forma de escuta. Uma forma que não precisava de voz.
Aprendeu a ouvir as árvores. Sim, elas falavam. Contavam histórias em suas rachaduras, nas folhas que tombavam com resignação. Contavam de tempos antigos, de outros que haviam passado por ali — alguns em paz, outros em fuga. A terra era um livro aberto, e Alleria lia cada página com os pés descalços, com a alma faminta de verdade.
E então vieram eles.
Os lobos.
Primeiro como sombras. Silhuetas distantes entre os troncos grossos. Ela os via com o canto dos olhos, mas não ousava se aproximar. Sentia o respeito que se deve ter aos que carregam sabedoria selvagem. Mas os lobos... eles sabiam. Sentiam nela algo que nem ela sabia nomear. Algo partido, sim, mas pulsante. Uma ferida antiga, mas que agora sangrava coragem.
O tempo fez seu trabalho invisível. Um dia, uma fêmea jovem deitou próxima a ela, sem medo. Alleria não se moveu. Apenas aceitou. Depois vieram os filhotes, brincando entre as pedras, roçando nela como se a conhecessem. E então, numa noite em que o céu estava tão limpo que as estrelas pareciam mais próximas, o lobo alfa se aproximou.
Era uma criatura magnífica. Imenso, imponente, com olhos cor de âmbar e um porte que fazia o mundo ao redor se calar. Ele a olhou por longos segundos. Alleria não desviou. Seus olhos humanos, feridos mas firmes, encontraram os olhos selvagens do lobo. Não havia medo. Havia entrega. E ele compreendeu.
Aproximou-se devagar, cheirou suas mãos, seu pescoço, seu coração. Depois uivou. E ela compreendeu: fora aceita.
Naquela noite, ela correu com eles. A floresta a acolheu como filha.
Os pés bateram na terra úmida com força, o vento rasgava os cabelos, o sangue corria quente como há muito não fazia. Os uivos atravessavam os galhos como tambores tribais. E Alleria, com os olhos brilhando e o peito aberto, soube: havia nascido outra vez. Não como quem esquece quem foi, mas como quem se refaz por inteiro. Não havia mais espaço para dor que não fosse transformada. Não havia mais peso que não pudesse ser solto.
A cada noite, corria com mais força, com mais liberdade. Caçava com eles, dormia entre eles, uivava para a lua como quem reza. Era mulher, era lenda, era animal. Não havia nome que a definisse, nem limite que a contivesse. Não pertencia a ninguém, nem mesmo à sua antiga dor.
A floresta era seu templo. O corpo era seu altar. A alma, agora, era vento.
Durante o dia, brincava com os filhotes, ensinava-os a subir pedras, escalar troncos. Às vezes deitava no lago, boiando com os olhos fechados, sentindo o sol acariciar sua pele. Outras vezes escalava árvores apenas para ver o horizonte, como quem vigia o mundo com olhos de quem já não teme mais o que vem. Ela dançava sozinha sob a chuva, girando, rindo, gritando — uma mulher em êxtase com sua própria existência.
Não havia aplausos. Não havia plateia. E ainda assim, era a mais verdadeira de todas as performances.
Os humanos que ousavam entrar naquela floresta falavam dela com reverência. Uns diziam que era uma bruxa da terra, outros que era o espírito de uma loba ancestral. Ninguém ousava se aproximar. Ela era mito. Um sussurro entre os caçadores, uma prece entre os viajantes.
Mas ela estava viva.
Tão viva que doía. Tão inteira que transbordava.
E nos momentos em que se lembrava da menina que chorava sozinha num quarto escuro, não havia rancor. Apenas um carinho distante, como quem olha para uma versão antiga de si com amor. Ela não queria voltar para o mundo. Não queria reencontrar os rostos que lhe mentiram, nem ouvir novamente os nomes que um dia a feriram. Não. Ela queria apenas continuar correndo. Correndo com o coração aberto e os pés sujos, atravessando a floresta como uma tempestade feita de liberdade.
Porque, no fim, Alleria havia compreendido algo que poucos têm coragem de aceitar:
A solidão pode ser um lar.
A dor pode ser uma semente.
E o silêncio, quando escolhido, é o som mais puro da alma liberta.
P.S: Essa Fanfic conto, crônica ou qualquer nome que você queira dar, ou eu chama-la é criação minha. Por favor respeito os direitos autorais dela.
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