sexta-feira, 2 de maio de 2025

Conto: Onde as Sombras Esperam


O relógio da praça marcava exatamente 18h14 quando Kyle a viu pela primeira vez. Sentada num banco de madeira coberto de musgo, Lika desenhava com o olhar absorto e os dedos manchados de carvão. A luz do entardecer esculpia contornos dourados nos seus cabelos avermelhados, e os olhos, da cor do âmbar úmido, brilhavam como se capturassem o mundo inteiro em uma única página.

Kyle a observou por tempo demais para que fosse apenas curiosidade. Não sabia ainda o porquê daquela inquietação súbita que crescera em seu peito. Era como se, ao vê-la, uma parte esquecida de si tivesse despertado — uma memória, talvez, ou um aviso.

Ninguém sabia de onde ele tinha vindo. Kyle aparecera na cidade de Aelmoor no último inverno, silencioso como a neve que caía sem pressa sobre as ruas de paralelepípedo. Morava no sótão de uma antiga livraria abandonada, onde colecionava relógios parados, espelhos cobertos por véus escuros e páginas de livros que não existiam mais. Seu rosto era belo, sim, mas de uma beleza fria, cortante — como uma estátua esquecida no tempo. As crianças diziam que ele falava com corvos. Os mais velhos murmuravam que ele tinha sangue amaldiçoado.

Mas Kyle era apenas uma sombra entre sombras — até Lika aparecer.

Lika era luz. Ela desenhava com fúria e graça, preenchendo folhas com mundos que pareciam querer sair do papel. Tinha vindo de outra cidade após a morte repentina da mãe e buscava em Aelmoor alguma paz, alguma raiz. Trabalhava numa pequena loja de molduras, mas passava as tardes vagando com seu caderno de desenho.

Quando Kyle se aproximou pela primeira vez, ela não se assustou. Apenas ergueu os olhos e perguntou:

— Vai ficar parado aí muito tempo?

Ele apenas sorriu, com um sorriso torto, como quem não lembrava a última vez que sorriu. Sentou-se ao lado dela e não disse mais nada. No silêncio, os dois pareceram se entender.

Nas semanas que se seguiram, Kyle passou a segui-la como uma sombra dócil. Às vezes, apenas observava; outras, deixava flores negras no banco onde ela costumava sentar. Lika, por sua vez, começou a desenhá-lo. Mas por alguma razão, nunca conseguia completar o rosto dele.

— Seus olhos não param no papel — dizia, frustrada.

— Talvez seja porque meus olhos já morreram há muito tempo — respondeu ele certa vez, enigmático.


O amor crescia, mas algo em Kyle o puxava para longe, como se o tempo lhe cobrasse uma dívida antiga. Havia marcas nos braços dele — cicatrizes de garras, símbolos gravados a ferro. À noite, seus pesadelos acordavam os pássaros, e seu grito ecoava entre as árvores como um lamento antigo.

Lika tentou perguntar. Ele apenas disse:

— Eu não sou feito pra luz. Mas você... você me fez querer lembrar como era o calor.

Ela o amou, mesmo sem compreender.

Uma noite, quando o céu parecia mais escuro que o habitual, uma figura apareceu na livraria. Um homem de olhos brancos e língua de cinzas. Kyle o reconheceu de imediato.

— Você prometeu. Um coração puro, em troca da sua maldição.

Kyle empalideceu.

— Ela não... não pode...

— O pacto foi feito, irmão do Vazio. Ou ela morre. Ou volta para as sombras de onde você veio.

Na manhã seguinte, Kyle não apareceu. Lika o procurou pela cidade, pelo bosque, pela velha ponte onde haviam se beijado pela primeira vez. Nada.

Naquela noite, ela encontrou um caderno. Era dele. Dentro, desenhos dela. Cada traço, cada gesto seu capturado com uma delicadeza quase divina. No final do caderno, uma carta:

*"Lika, meu raio de luz nas ruínas do mundo,
Meu nome não é Kyle. Meu verdadeiro nome foi apagado na noite em que vendi minha alma para salvar minha irmã de um destino cruel. Paguei o preço: vivi entre os mortos, nunca amando, nunca sentindo. Até você.

Você me deu a lembrança do que era ser humano. E é por isso que não posso permitir que o pacto leve você. Esta será minha última noite nesta terra. Não chore. Transforme minha ausência em arte.
Nos seus desenhos, eu viverei.
— K."*

Lika chorou por dias. Não havia corpo, apenas o casaco negro dele, encharcado de orvalho sobre o banco onde ela o conhecera.

Epílogo – O Retrato

Anos se passaram. Lika ficou conhecida como a “Desenhista de Sombras”. Suas exposições eram visitadas por milhares. O quadro mais famoso — um homem de olhos indecifráveis e sorriso triste — era chamado de “Kyle”.

Diziam que, em noites de neblina, um vulto de casaco escuro caminhava entre as árvores de Aelmoor, parando por instantes diante do ateliê de Lika, como se ainda a observasse desenhar.

E ela, sempre que sentia a presença, apenas sorria. Porque sabia: algumas sombras, quando amadas, aprendem a brilhar de novo.

P.S: Essa Fanfic conto, crônica ou qualquer nome que você queira dar, ou eu chama-la é criação minha. Por favor respeito os direitos autorais dela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário